Em defesa da tradução

Escrito por Fábio Bettega
Volta e meia um crítico tão presunçoso quanto desinformado [espécime
que proliferou de maneira particularmente rápida durante o bafafá
criado pelo lançamento de "O Senhor dos Anéis – A Sociedade do Anel"
nos cinemas] inventa de criticar a tradução brasileira da obra-prima de
Tolkien. Onde já se viu, vociferam, traduzir nomes próprios! Que
heresia é esse negócio de Bolseiro, Valfenda e Passolargo! Por que não
deixar tudo em inglês, que além de ser o idioma original é muito mais
chique que o nosso pobre patuá luso-brasileiro, não é mesmo?
 
 
 
Mesmo caras talentosos e bons conhecedores do
universo tolkieniano, como o editor Rodrigo Salem, da revista Set,
acabaram caindo nessa esparrela, sabe-se lá o porquê. Acontece, porém,
que eles estão fundamentalmente errados. Diretrizes explícitas do
próprio Tolkien, depois de verificar os erros e acertos de diversas
traduções européias, mostram a necessidade de traduzir nomes próprios
como forma de manter de pé a delicada arquitetura ling?ística do livro.

O esteio desse raciocínio é a elaborada "ficção" na qual Tolkien se
coloca não como autor de "O Senhor dos Anéis", mas como mero tradutor
do Livro Vermelho do Marco Ocidental [para mais detalhes a respeito,
confira o Apêndice F de "O Senhor dos Anéis"]. Esse pressuposto dá ao
autor um ponto de vista – o dos hobbits – como dominante, e faz do
westron, o idioma de Frodo, o equivalente do inglês, sua língua
materna. A necessidade de coerência faz com que todos os nomes em
westron, inteligíveis e analisáveis para os hobbits, sejam passados
para versões inglesas com essas mesmas características.

Ora, manter numa tradução em português [ou para qualquer outra língua]
nomes próprios em inglês seria quebrar essa regra, tirando do leitor a
capacidade para entender o significado, muitas vezes essencial, dos
nomes dos personagens e lugares – a não ser que houvesse um imenso
glossário, desajeitado e nem sempre esclarecedor, no final dos volumes.
Foi esse absurdo que Tolkien percebeu ao deixar suas indicações no
"Guia para os nomes em O Senhor dos Anéis", publicado postumamente:

"É DESEJ�?VEL traduzir tais nomes, uma vez que deixá-los como estão
perturbaria o cuidadosamente elaborado esquema de nomenclatura e
introduziria um elemento inexplicado, sem lugar na história ling?ística
imaginária do período".

Só essa citação já bastaria para derrubar o argumento dos
pseudo-anglicistas [ahá! taí um ótimo nome de seita pros inimigos da
tradução]. Mas uma análise detalhada de dois dos nomes mais criticados
na versão da editora Martins Fontes – Bolseiro e Valfenda – mostra como
a intenção de Tolkien foi seguida ? risca. Abaixo, traduzo alguns
trechos do guia criado pelo velho Professor:

"BAGGINS – Feito com a intenção de lembrar a palavra "bolsa" – comparar
com a conversa entre Bilbo e Smaug em "O Hobbit" – e de ser associado
[pelos hobbits] com BAG END […], o nome local para a casa de Bilbo.
[Era o nome local da fazenda de minha tia em Worcestershire, que ficava
no fim de uma estrada que levava até ela mas não ia adiante]. Comparar
também com Sackville-Baggins.
A tradução deveria conter um
elemento com o significado de "saco, bolsa".- "Bolseiro" e "Bolsão"
serviram como tradução de Baggins e Bag End. "Bolsão" dá a idéia de
coisa aglomerada e se associa naturalmente a Bolseiro, como é
necessário. Outra solução boa foi a da versão lusitana, que é "Fundo do
Saco".

"RIVENDELL – "Vale fendido". Tradução na Língua Comum de
Imladris[t],"vale profundo da fenda". Traduzir de acordo com o sentido
ou manter a forma original, da maneira que for melhor".
Nesse
caso, os tradutores foram ainda mais cuidadosos, já que a palavra
"dell", um tanto arcaica em inglês, teve o correspondente Val-, que tem
um sabor parecido em português.

Mais exemplos poderiam ser citados ao infinito, mas esses devem ser
suficientes para mostrar a necessidade da tradução e seu sucesso.

PS – A partir de hoje, Tirith Aear passa a ter atualizações quinzenais.
Torçam para que este cisne aqui consiga se disciplinar e escrever
regularmente ;-]

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[…] O nome “Bag End” parece realmente bobo e totalmente inventado por alguns leitores. Mas o buraco é mais embaixo. É meio que vagamente parecido com o nome do nosso herói, Bilbo “Baggins” (que por sinal significa “almoço embalado” no dialeto de Yorkshire) e ficamos com a impressão de que a palavra “fim” se refere a um destino final, o lugar onde os hobbits planejam voltar para quando terminarem suas aventuras pela Terra-Média. Alguns tradutores fizeram o favor de literalmente chamar a casa de Bilbo (Bag End) como “ponta de saco” e isso gera conversas sobre traduções e suas versões em outras línguas desde 2005. […]

Leila

Adorei 🙂

Mago do Alvejante

Artigo fenomenal! Realmente é um “tapa” na cara dos que adoram ficar criticando a tradução dos nomes. Adorei principalmente o argumento da tradução do Livro Vermelho, ótimo para usar em discussões XD

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