Um hobbit chamado Tolkien

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Escrito por pandatur
(Gazeta Mercantil, 17 de agosto de 2002 por Gonçalo Junior) O mundo hoje, ao que parece, divide-se entre os fãs da trilogia "O Senhor
 

(Gazeta Mercantil, 17 de agosto de 2002 por Gonçalo Junior) O mundo hoje, ao que parece, divide-se entre os fãs da trilogia "O Senhor dos Anéis", do escritor inglês J. R. R. Tolkien (1892-1973), e aqueles que jamais apreciarão seus livros. Afinal, não é muito fácil encontrar alguém que se aventurou a ler as mais de 1,6 mil páginas da série e não acabou doutrinado a venerá-lo. A popularidade de Tolkien já dura décadas, mas o fenômeno "Harry Potter", da escritora J. K. Howling, sem dúvida estimulou editores de todo o mundo e a indústria do cinema a apostarem na força de seus escritos. Um sinal de que estavam certos aconteceu na Inglaterra, semana passada, quando, somente no primeiro dia de vendas do DVD da bem-sucedida versão cinematográfica da primeira parte da trilogia, "A Sociedade do Anel", 1,27 milhão de cópias foram adquiridas. Ao mesmo tempo, os livros de Tolkien são reeditados em dezenas de países, em edições sucessivas. A tolkienmania promete ter fôlego por pelo menos mais dois anos, uma vez que toda a trilogia foi filmada de uma só vez e as fitas serão lançadas a cada começo de ano – as próximos, em 2003 e 2004. No Brasil, como prévia para o episódio 2, "As Duas Torres", três lançamentos prometem fazer a festa dos fãs do escritor: "Tolkien, Uma Biografia", de Michael White; a versão em quadrinhos do livro "The Hobbit", de Charles Dixon e David Wenzel; e o DVD duplo do primeiro filme. A biografia de White não é a primeira do escritor que sai no Brasil. Em 1992, a Martins Fontes lançou "J. R. R. Tolkien, Uma Biografia", de Humphrey Carpenter, um dos melhores trabalhos já publicados sobre o criador de "O Senhor dos Anéis". White tem três méritos em seu livro: humanizar a vida de Tolkien, ao expor suas fraquezas; traçar um eficiente paralelo entre sua vida e sua obra; e interpretar seu processo criativo, relacionando-o �s suas influências. De modo objetivo, ajuda a compreender por que Tolkien é considerado o grande autor da ficção de fantasia de todos os tempos, apesar do desdém silencioso que a crítica especializada lhe impõe. Se até então todos aqueles que escreveram sobre o escritor têm certa dificuldade para separar a porção de fã, com excessivo zelo quanto �s suas falibilidades e personalidade, White argumenta que a infância sofrida seria fundamental em seu comportamento e obra. Filho de gerente de banco e dona de casa, John Ronald Reuel Tolkien nasceu na África do Sul, então colônia inglesa, para onde seu pai migrou pouco antes de o filho nascer. Quando já morava na Inglaterra, ficou órfão paterno aos 4 anos e materno aos 11. Ele e o irmão foram tutelados por um padre que não mediu esforços para encontrar uma família que os acolhesse. Segundo White, o escritor jamais perdoou a família por ter abandonado sua mãe porque ela virou católica. O isolamento e a falta de dinheiro teriam contribuído para a sua prematura morte, por diabetes, aos 34 anos. As dificuldades dos primeiros anos teriam contribuído para que Tolkien desenvolvesse uma personalidade complexa e difícil. Especializado em tradição lingüística e literatura da região central da Inglaterra, foi professor por 34 anos, entre 1925 e 1959, na cidade de Oxford. Ainda garoto, mergulhou na literatura e no estudo de idiomas e passou a consumir compulsivamente poemas e romances que falavam de lendas, cavaleiros medievais, fadas e bruxas. A facilidade em assimilar os mais diferentes idiomas falados na Europa levou-o a ler obras no original em norueguês, alemão, espanhol, latim e grego. Ainda adolescente, começou a investigar o aspecto e o som das palavras. Não demorou também para começar a inventar suas próprias línguas. Mesmo assim, na escola, era um aluno mediano, que chegou a ser reprovado uma vez no exame para estudar em Oxford e posteriormente conseguiu nota suficiente apenas para um bolsa parcial. Logo após a traumática experiência de ter lutado na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), Tolkien começou a fazer anotações sobre a mitologia que dominara seu pensamento. Viveu a vida inteira com a mulher que foi sua primeira namorada, Edith, três anos mais velha. White o descreve como alguém excessivamente meticuloso e obsessivo, que vivia num outro mundo, incapaz de simpatizar com alguém do ramo editorial, ou qualquer outra área. Há, segundo o biógrafo, uma certa medida de cruzamento entre a personalidade de Tolkien e a de seus personagens, os hobbits. "Na verdade, em vários aspectos, ele não era muito diferente de Bilbo Bolseiro (protagonista de seu primeiro livro �O Hobbit�, de 1937)." O escritor não confiava, e �s vezes desprezava, o século XX. Acreditava que a ciência e a tecnologia nada haviam feito de meritório para mudar a sorte da humanidade. Provavelmente por isso nunca teve uma TV em casa e raramente ouvia rádio. Não gostava da literatura, música e teatros modernos, e não perdia tempo com política contemporânea. Pode-se concluir, escreve White, que ele na verdade não desejava de modo algum viver no mundo moderno, e que parte dessa desaprovação era o estímulo para a sua criatividade. Enfim, Tolkien preferia a Terra Média, um mundo extremamente complexo que ele mesmo criou, com línguas e mitologias próprias, habitado por hobbits, seres pequenos, menores que os anões, com estômago grande, que se vestiam em cores vivas e não usavam sapatos porque seus pés tinham sola natural de couro. Assim, em alguns aspectos, o mundo interior de Tolkien, o da Terra Média, tornou-se mais real para ele do que a sua vida externa. "É significativo que o seu mundo imaginário tenha deitado raízes quando ele era muito jovem, e oferecido uma realidade alternativa extremamente complexa, baseada no mundo quase de conto de fadas do início da infância." Não por acaso, "O Silmarillion" lhe era tão especial: despejara ali muito de si mesmo, coisas que amava, temia ou odiava. "Era um documento visivelmente muito pessoal, e tornou-se a obra que dominou sua vida." Tolkien, por outro lado, era um escritor ambicioso. Desde cedo, chegou � conclusão de que, ao contrário da Islândia, da Escandinávia ou Europa Central, a Inglaterra não tinha um conjunto significativo de lendas que formassem uma mitologia completa. White acredita que a fascinação pela língua e a total imersão nela não eram as únicas qualidades de que ele precisava para criar essa mitologia. Três outros fatores foram igualmente importantes e ele os possuía. Primeiro, precisaria de uma imaginação que moldasse a língua e movimentasse as personagens pelo reino ficcional que concebera. Segundo, da disciplina para continuar escrevendo. Por fim, de um motivo para fazê-lo. Nesse contexto, a Terra Média aparece como um universo que, no jargão cristão, "caiu", mas não foi redimido. Em outras palavras, seria o mundo de sua in
fância, um lugar e uma época antes de sua mãe encontrar a Igreja. Um ponto polêmico da biografia de White fala da amizade de Tolkien com o também escritor de fantasia e contemporâneo C. S. Lewis. Então professores, os dois se conheceram em 1926, numa reunião no Merton College. Lewis descreveu a primeira impressão do futuro amigo com ironia: "Um camaradinha conciliador, pálido e fluente… acha que toda literatura é escrita para diversão de homens entre 30 e 40 anos… Não tem nada de nocivo: só precisa de uma ou duas boas palmadas." Ambos tinham muito em comum além da profissão e de terem lutado na guerra. Adoravam idiomas e eram fascinados por mitologia nórdica e literatura inglesa antiga. Lewis trabalhava em sua própria mitologia num ritmo frenético. Tamanha pressa resultou numa das causas da contrariedade do amigo, que também odiou os textos de Lewis – achou-os cheios de contradições e inconsistência. Na prática, Tolkien aplicava padrões exigentes a si mesmo e esperava a mesma qualidade e integridade dos amigos. A amizade dos dois piorou com a projeção literária de ambos. O futuro autor de "O Senhor dos Anéis" começou a achar que Lewis lhe "tomara empréstimos", acreditava que havia ecos de suas idéias nos livros do amigo, e que este reburilava e reutilizava alguns de seus nomes. Quase no final da década de 1940, a amizade dos dois escritores praticamente chegara ao fim. "Haviam se tornado estranhos pelas opiniões religiosas diferentes, e Tolkien ficava irritado com o sucesso comercial de Lewis." Os méritos de Tolkien como escritor, no entanto, são inquestionáveis. White observa que o último meio século viu a publicação de vários milhares de livros de fantasia cujos autores devem muito a Tolkien. Além disso, nenhum ofereceu ao leitor o senso de completude e integração que vem de "O Hobbit", "O Senhor dos Anéis", "O Silmarillion" e "Contos Inacabados". E há um motivo muito forte para essa singularidade. "Ao contrário de qualquer outro autor dos tempos modernos, quando não estava cumprindo seus compromissos acadêmicos, ele dedicava quase toda a sua vida adulta, 70 anos, a essa criação." Graças a Tolkien, a "ficção fantástica", ou "literatura épica romântica", que era muito marginal e muitas vezes empacotada com obras de ficção científica, ganhou projeção e popularidade. White explica que a fantasia divergia da ficção científica dessa época porque, em vez de trabalhar com idéias científicas futuristas, os escritores do gênero preferiam localizar suas aventuras em mundos alternativos, que �s vezes poderiam ser tão distantes da "realidade" quanto lhes aprazia. A adaptação para os quadrinhos de "O Hobbit", feita por Charles Dixon e David Wenzel, é uma forma idealizada das imagens composta por Tolkien que confirmam sua genialidade criativa. A edição acaba de sair no Brasil. Em 133 páginas coloridas, impressas em papel cuchê, a versão de Dixon e Wenzel consegue um meio termo ainda tão raro que consiste em combinar literatura e história em quadrinhos. Ao sintetizar os diálogos e a narrativa de Tolkien, Dixon aproveita com competência os desenhos como complemento descritivo dos cenários. É um trabalho de encher os olhos, com páginas meticulosamente ilustradas que reproduzem cenários � altura dos imaginados pelo autor. "O Hobbit" é, sem dúvidas, o melhor livro de Tolkien. Enquanto "O Senhor dos Anéis" cansa o leitor com suas longas descrições e ações arrastadas, esta pequena obra que serve de preâmbulo � trilogia é uma sensacional aventura de tirar o fôlego. Uma trama aparentemente simples – resgatar o tesouro de um temível dragão – foi o ponto de partida para Tolkien dar continuidade e expandir a tradição inglesa das narrativas de fantasia. A idéia da história teria surgido quando ele corrigia a prova de um de seus alunos. Ao mesmo tempo em que viu uma página em branco, sem respostas, o professor notou um buraco no tapete de seu escritório. Usou a folha para escrever a frase "Numa toca no chão vivia um hobbit." O que veio depois pode ser visto no DVD duplo do filme lançado nos cinemas em janeiro deste ano. Além da história amparada em espetaculares efeitos de computação gráfica, a edição traz um mostruário de um videogame originário do filme, o clipe da canção "May It Be", da cantora Enya, três documentários e uma prévia do próximo episódio, "As Duas Torres". Embora a Warner garanta que a edição especial com quatro DVDs que será lançada em novembro nos Estados Unidos não será distribuída no Brasil em português, dificilmente a edição atual será definitiva. Entre muitos extras da caixa americana, há uma nova edição do filme, com acréscimo de 30 minutos. O realismo de Tolkien justifica o tipo especial de leitor que ele criou: obsessivo, incansável, teimoso e cultuador. Sem dúvida, esse público será saciado com fartura por um bom tempo ainda. (agradecimento � fã Soraya pelo texto)

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