J.R.R. Tolkien nas verdadeiras Montanhas Nevoentas

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Escrito por Edson Lima

J-R-R-Tolkien-1Muitas vezes a experiência pessoal de um autor o influencia no momento de criar seus mundos e personagens, mas quanto da experiência pessoal de J. R. R. Tolkien há em seus escritos? Nem sempre é fácil dizer e, ao tentar, corre-se o risco de fazer afirmações levianas demais. Porém, quando o próprio autor nos dá as pistas, a história é outra.

Quem já leu a biografia de Tolkien, seja a escrita por Humphrey Carpenter ou a de Michael White, ou já leu As Cartas de J.R.R. Tolkien, deve conhecer um episódio importante em sua vida: a viagem que fez à Suíça durante sua juventude.

Território ocupado por parte significativa dos Alpes, uma das cadeias de montanhas mais famosas do mundo, a Suíça foi o destino que um grupo de amigos ingleses, liderados pela família Brookes-Smith, escolheu para passar alguns dias entre os meses de julho e agosto de 1911. Entre eles, o jovem John Ronald Reuel Tolkien.

Assim como Bilbo Bolseiro foi marcado pela experiência de atravessar pela primeira vez as Montanhas Nevoentas (também conhecidas como Montanhas Sombrias por leitores do Brasil, numa tradução de Misty Mountains contestada por muitos), também Tolkien o foi, ao visitar pela primeira vez, aos 19 anos, as neves eternas das alterosas e impressionantes montanhas dos Alpes e caminhar por suas passagens estreitas e perigosas. A experiência o influenciaria ao escrever partes de O Hobbit e O Senhor dos Anéis.

Num artigo publicado recentemente pelo fan site The One Ring, em que seu autor relata a vivência de visitar os lugares por onde Tolkien passou na Suíça, foi revelada uma fotografia em que aparecem quinze pessoas posando para a câmera.

Tolkien 1911-Suíça

Foto rara e que se encontra no livro Tolkien’s Gedling: The Birth of a Legend, de Andrew H. Morton e John Hayes, e que originalmente vem de um livro de memórias de Colin Brookes-Smith, ela mostra Tolkien e seus quatorze companheiros durante a aventura nos Alpes suíços.

Da direita para a esquerda: Doris Brookes-Smith, Tony Robson, Colin Brookes-Smith, Phyllis Brookes-Smith, Reverendo C. Hunt, um amigo não identificado de J.R.R. Tolkien, Jane Neave (tia de Tolkien), Hilary Tolkien (irmão mais novo de Tolkien, de camisa branca), uma mulher não identificada, o próprio Tolkien (com um lenço ou cachecol branco ao pescoço), Jeanne Swalen (babá suíça), Muriel Hunt, Dorothy Le Couteur (uma inspetora de escola), Helen Preston (uma amiga de Jane Neave), e o guia suíço.

 Um grupo de quinze pessoas! O mesmo número de integrantes do grupo de Thorin Escudo de Carvalho, que no livro O Hobbit organiza uma demanda de 13 anões, um hobbit e um mago para recuperar o reino (e o tesouro) de seus ancestrais que foi tomado pelo Dragão Smaug. Ao ler Tolkien relatando sua experiência nos Alpes, o leitor imediatamente reconhece as passagens em que Bilbo, Gandalf e os Anões se aventuram pelas Montanhas Nevoentas:

[Foi] “… (com um grupo misto de cerca do mesmo tamanho da companhia em O Hobbit) que viajei a pé com uma mochila pesada por boa parte da Suíça e por sobre muitas passagens elevadas. Foi ao nos aproximarmos da Aletsch que fomos quase destruídos por grandes pedras desprendidas ao sol que rolaram uma encosta nevada abaixo. Uma rocha enorme de fato passou entre mim e o próximo na frente. Isso e a ‘batalha dos trovões’ – uma noite ruim em que nos perdemos e dormimos em um estábulo – aparecem e O Hobbit”. – As Cartas de J.R.R. Tolkien, p.294.

Quando o filho de Tolkien, Michael, visitou a Suíça, o autor escreveu-lhe uma carta, datada de 1967, felicitando-o e novamente reconhecendo sua aventura nos Alpes como influência marcante em seus textos.  Segue o relato com mais detalhes:

“Estou …. muito feliz por você ter conhecido a Suíça e a própria parte que antigamente eu melhor conhecia e que teve o efeito mais profundo sobre mim. A viagem do hobbit (de Bilbo) de Valfenda ao outro lado das Montanhas Nevoentas, incluindo a descida pela encosta nevada e de pedras escorregadias até o bosque de pinheiros, é baseada em minhas aventuras de 1911 […]. Nossas andanças, principalmente a pé, em um grupo de 12 [nota: há uma pequena contradição aqui quanto ao número de membros do grupo em relação à fotografia acima] agora não estão claras em seqüência, mas deixam muitas imagens vívidas tão claras como se tivessem ocorrido ontem (isto é, tão claras quanto se tornam as lembranças remotas de um velho). Fomos a pé carregando grandes mochilas praticamente todo o caminho de Interlaken, principalmente por caminhos montanhosos, até Lauterbrunnen e assim até Mürren e, por fim, até a ponta do Lauterbrunnenthal […]. Dormíamos de maneira rústica – os homens –  , frequentemente em celeiros de feno ou estábulos evitando estradas e jamais fazendo reservas em hotéis e, após um magro café da manhã, alimentávamos-nos ao ar livre […]. Deixei a vista de Jungfrau com profundo pesar: neve eterna, entalhada, ao que parecia, em uma luz do sol eterna, e o Silberhorn pontiagudo contra o azul escuro: o Pico de Prata (Celebdil) de meus sonhos”.  – As Cartas de J.R.R. Tolkien, p. 370-371

Ao ver imagens de Lauterbrunnen, localidade citada acima por Tolkien, nota-se outra referência de sua viagem à Suíça em seus escritos: o vale de Valfenda, A Última Casa Amiga a Leste do Mar, refúgio da tradição e sabedoria na Terra-média, e onde se encontra parte do povo élfico e Elrond Meio-Elfo. Lugar importante nas sagas de Bilbo e Frodo Bolseiro.

O vale de Valfenda, por Tolkien, e o vale de Lauterbrunnen
O vale de Valfenda, por Tolkien, e o vale de Lauterbrunnen

Tolkien também cita o Silberhorn, a influência para Celebdil, o pico das escadas infinitas que ligam os salões mais profundos de Kazad-dûm ao topo da Torre de Durin, em que Gandalf persegue o Balrog de Moria até sua extremidade superior, e lá ambos encontram seu fim, mas onde Gandalf é mandado de volta, mais poderoso e como O Branco.

Silberhorn-Celebdil

 A viagem de Tolkien à Suíça em 1911 foi tão marcante em sua vida, a ponto de identificá-la em passagens de seus livros e paisagens da Terra-média, que o autor sentia uma profunda saudade e vontade de revisitá-la.  Em outra carta, datada de 1947, Tolkien a finaliza desejando boa viagem à Suíça a seu editor, Sir Stanley Unwin.

“Desejo ao senhor e a Rayner [o filho de Stanley Unwin] uma boa viagem, negócios bem-sucedidos e depois ótimos dias entre as Montanhas. Como desejo ver as neves e as grandes alturas novamente!” – As Cartas de J.R.R. Tolkien, p. 121

Se o leitor ainda não conhecia esta passagem das Cartas, mas lhe parece já ter lido algo assim antes, você não está enganado. A citação acima é muito parecida com o que Bilbo Bolseiro diz a Gandalf no capítulo “Uma Festa Muito Esperada”, em O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel. “Quero ver montanhas de novo, Gandalf – montanhas […].”

Parece que não só as aventuras do jovem J. R. R. Tolkien tornaram-se as aventuras de Bilbo Bolseiro, como também alguns de seus anseios e desejos mais íntimos foram colocados como parte importante da personalidade e destino do hobbit, já que, de volta a Valfenda, em O Senhor dos Anéis, e ao contrário de Tolkien, Bilbo teve a chance de novamente contemplar as Montanhas pela última vez, antes de sua última viagem rumo às Terras Imortais.

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Dica: Para aqueles que desejam percorrer os caminhos que Tolkien fez pela Suíça, a partir de outubro deste ano uma empresa passou a oferecer esse serviço. Consulte: A Middle Earth tour at the source—The Swiss Alps.

Referências:

Tolkien, John Ronald Reuel, As Cartas de J.R.R. Tolkien – organização de Humphrey Carpenter, com assistência de Christopher Tolkien; tradução de Gabriel Oliva Brum. – Curitiba: Arte e Letra Editora, 2006, pp. 121, 294, 370-371.

Tolkien, J. R. R. O Senhor dos Anéis: primeira parte: a sociedade do anel. Tradução de Lenita Rímoli Esteves, Almiro Pisetta; revisão técnica e consultoria Ronald Eduard Kyrmse: coordenação Luís Carlos Borges. – 2ª Ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 33.

TheOneRing.net:  In Tokien’s Real Misty Mountains

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Leia também: As Cartas de J. R. R. Tolkien

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